Portugal teria podido proteger muitos dos judeus de origem portuguesa, mas
não o fez
JOSÉ MANUEL FERNANDES
19/06/2009 - 00:00
(actualizado às 00:00 de 20/06/2009)
A história dos judeus portugueses foi
condensada em 250 páginas pelo académico alemão Carsten L. Wilke.
Chegaram à Península Ibérica muito, muito tempo antes de Portugal nascer,
ainda no século I, quando a Lusitânia fazia parte do Império Romano. Conheceram
os reinos cristãos anteriores à invasão muçulmana, foram protegidos pelos
primeiros reis de Portugal até ao édito de expulsão, foram perseguidos como
cristãos-novos, primeiro no continente, depois no Brasil ou na Índia conforme o
longo braço da Inquisição lá foi chegando, começaram a regressar no século XIX
mas nunca voltaram a ser uma minoria importante.
Carsten L. Wilke, doutorado em Estudos Judaicos pela Universidade de
Colónia, Alemanha, e investigador no Instituto Steinheim de História Judaica
Alemã, em Duisburg, aceitou o desafio de condensar em apenas 250 páginas
destinadas ao grande público a história dos judeus portugueses. Uma história
que o autor considera bem estudada, sendo numerosos os trabalhos académicos, e
claramente autónoma da dos outros judeus da Península Ibérica, uma história
que, no entanto, é mal conhecida pelos não especialistas num país onde
raramente os livros escolares lhe dedicam mais do que rápidas - e escassas -
referências.
O que começou por fasciná-lo na história
dos judeus portugueses foi o facto de estes gozarem de um estatuto de protecção
muito superior ao tinham noutros países na Idade Média. Porquê esse estatuto
excepcional?
A protecção excepcional de que beneficiaram os judeus portugueses deriva do
poder muito maior que tinham os reis em Portugal. As condições da reconquista
criaram, até pela fuga de parte da população muçulmana, condições especiais
para que os reis e os aristocratas protegessem os judeus contra as aspirações
da Igreja e o preconceito popular. A Casa Real também utilizou os judeus como
instrumento de centralização de poder.
Nessa relação não terá também tido
influência não termos vivido um regime medieval clássico, de os reis, para
dominarem o território, terem outorgado cartas de foro a muitas povoações
dando-lhes grande autonomia?
Os judeus nessa época não viviam apenas nas cidades, não eram só
comerciantes. A distribuição das suas populações era dispersa durante toda a
Idade Média. Em Portugal sabemos que estavam muito presentes nas zonas rurais
do interior, de Castelo Branco a Bragança. Para além disso, utilizaram os
judeus para povoarem as zonas que iam conquistando aos mouros...
Recentemente um estudo genético mostrou
uma forte presença de genes mais frequentes entre judeus nas populações do sul
da Península, Portugal incluído...
Li vários artigos sobre esse estudo que me surpreendeu muito. Por um lado
temos toda a pesquisa documental, que apontava num sentido, e depois esse
estudo genético que aponta numa direcção diferente. A documentação apontava
para Trás-os-Montes, para a Beira Interior, e agora os traços dos genes apontam
para sul. A sede, por assim dizer, do cripto-judaísmo português sempre foi
Bragança. Temos de investigar mais, mas a presença mais forte de genes a sul
poderá mostrar que a mistura foi mais forte a Norte do que a Sul.
Os primeiros sinais da presença judaica
em Portugal datam do ano 69 DC, por altura da segunda destruição do Segundo
Templo, agora pelos romanos. Aqui viveram ainda com o Império, depois viveram
nos múltiplos reinos cristãos que se formaram, por fim sob a dominação árabe.
Foi no período do Al Andaluz que viveram melhor?
A situação dos judeus conheceu uma enorme melhoria com a invasão muçulmana.
Antes era frequente os reinos cristãos tentarem converter os judeus ao
cristianismo pela força: ou se convertiam ou eram expulsos. Muitos viam-se
obrigados a prosseguir os seus ritos clandestinamente e se eram descobertos
faziam deles escravos. Não custa a crer que essas comunidades judaicas tenham
apoiado a tomada do poder pelos muçulmanos. Ao mesmo tempo, os muçulmanos
perceberam que os judeus podiam ser-lhes úteis para controlarem um território
onde as populações cristãs eram mais numerosas do que as islamizadas.
Mas essa benevolência não durou
sempre...
Não. Houve períodos em que a Península esteve dividida em vários reinos
rivais, houve uma nova invasão vinda do Norte de África e com ela vieram
dirigentes islâmicos mais fanáticos que, também eles, queriam converter tantos
os judeus como os cristãos ao islamismo. Isso sucedeu por volta do no século
XII, época em que os judeus voltaram a ser melhor acolhidos nas áreas cristãs
da Península e migraram de sul para norte.
Esse período coincide com a criação do Reino de Portugal, com a
tomada de Lisboa. O que se sabe sobre os judeus que aqui viviam?
Infelizmente
muito pouco, pois investigou-se mais o que se passava em Granada ou em Córdova.
Nunca se colocou a questão de saber qual a diferença na área de Portugal. Há um
documento interessante que mostra que a autoridade máxima judaica na Lusitânia
tinha, na época muçulmana, um poder como não existia em nenhuma outra
comunidade. Podia realizar julgamentos, determinar penas, condenar à morte.
Dir-se-ia que o extremo ocidental da Península, e da Europa, era o "wild
west": havia pouca autoridade mas havia homens poderosos. Isto também
ajuda a explicar a protecção que os primeiros reis de Portugal deram aos
judeus. No fundo tiraram partido de uma elite mais culta e com algum poder que
os podia servir.
O que sucede é que a mudança de atitude dos reis portugueses vai
ter lugar nos séculos XV e XVI, que são os dois séculos de glória de Portugal.
Um dos primeiros reis a perseguir os judeus é D. João II, para os portugueses O
Príncipe Perfeito.
Exacto,
quando o seu pai, Afonso V, foi o rei que se destacou na protecção dos judeus.
D. João II foi o rei das grandes expedições. Onde estavam os
judeus no seu tempo?
Financiavam
os investimentos necessários. E muitos eram os estudiosos, os sábios, os que
apoiaram com estudos, levantamentos e mapas essa epopeia.
Porquê então a mudança de atitude?
Temos
de perceber o que era o Portugal de então para os judeus no quadro de uma
Europa que, no século XV, foi terrível para esta minoria, que era perseguida
por todo o lado. Muitos dos judeus fugidos foram acolhidos em Portugal por D.
Afonso V, boa parte deles vindos de Espanha que os expulsou muito antes de nós.
Nessa época só dois estados aceitavam os judeus que estavam a ser expulsos de
todo o lado: Portugal e a Polónia. D. João II continuou a receber os judeus
como o pai, mesmo sendo menos hospitaleiro, pois a sua principal preocupação
era consolidar o seu poder pessoal contra os poderosos do reino e as diferentes
elites. O que por vezes influencia a sua imagem negativa junto dos judeus foi
ter enfrentado a Casa de Bragança, aliada dos judeus, o que indignou Issac
Abravanel cujos escritos influenciaram a imagem negativa, na historiografia
judaica, de D. João II. Mesmo assim é verdade que, nesse reinado, o estatuto
dos judeus se degradou, mas nada que pudesse anunciar, ou mesmo fazer prever, o
que viria depois.
D. Manuel, que lhe sucede, tem um comportamento diferente dos
Reis Católicos: não força a expulsão, antes permite a permanência dos judeus
desde que se convertam ao cristianismo. À primeira vista parece uma atitude
mais humana, mas muitos pensam hoje que foi muito mais cruel...
Sem
dúvida. Do ponto de vista da história do judaísmo foi mais cruel, muito mais
duro, aquilo que Portugal fez. D. Manuel tinha muito mais necessidade de manter
a comunidade judaica do que os Reis Católicos, e por isso tentou evitar que ela
se exilasse. Há séculos que as finanças da coroa eram administradas por judeus,
reinado após reinado eles eram como que os ministros das Finanças. A tensão que
se criou com Espanha foi que os Reis Católicos não podiam tolerar uma presença
tão forte dos judeus em Portugal e D. Manuel sabia que não podia haver expansão
portuguesa sem estar em paz com os seus vizinhos. Daí que tentou a quadratura
do círculo: ficar com os judeus conseguindo que eles se convertessem. Fê-lo por
interesse, se bem que tivesse começado a surgir em Portugal uma classe que
queria competir com os judeus no comércio internacional, gente que não aceitava
o monopólio dos judeus.
Para os judeus a conversão forçada foi então pior do que a
expulsão?
Claro.
Para os religiosos, era intolerável aceitar uma religião estrangeira. Para os
comerciantes e para elite era a catástrofe. Lisboa era o centro do mundo, o
lugar central da mudança da economia mundial. Se pensarmos que tinha sido aos
judeus que D. Manuel dera a possibilidade de gerir os negócios coloniais, a sua
expulsão ou conversão forçada resultaria sempre em catástrofe. Viveram um
dilema terrível: não podiam sair, porque o rei impedia-os, e não podiam senão
praticar o judaísmo clandestinamente. Eram judeus em casa, cristãos na rua.
Pior: D. Manuel procurou integrar os cristãos novos e permitiu que continuassem
a negociar e prosperar, tendo até benefícios da coroa. O horror estava nas
conversões forçadas, sobretudo das crianças arrancadas aos pais e, mais tarde,
na ferocidade da Inquisição. É nessa altura que os judeus que podem fugir
começam a fazê-lo.
E o que se passou nas colónias? Os judeus, ou os cristãos-novos,
desempenharam um papel central na florescente economia do Brasil antes de a
Inquisição lá ter chegado.
Houve
vários motivos para que a civilização cripto-judaica tenha podido sobreviver
mais tempo no Brasil. Por um lado, o território era vastíssimo. Por outro lado,
a coroa preferiu, durante muito tempo, manter o Brasil na dependência de Lisboa
e isso teve como consequência que a Inquisição não pôde instalar um tribunal
próprio na grande colónia. Finalmente é bom recordar que muitos dos judeus
fugidos de Lisboa se instalaram nos Países Baixos e que estes também chegaram a
ocupar partes do Brasil. Os laços entre essas duas comunidades que se conheciam
permitiram um desenvolvimento do comércio que teria sido impossível noutras
circunstâncias.
Tudo muda quando a Inquisição chega ao Brasil?
Sim.
Isso passa-se no início do século XVIII, quando se instala no Rio de Janeiro. É
nessa altura que centenas de brasileiros, acusados de cripto-judaísmo, são
perseguidos, condenados e mortos. A historiografia estabelece de forma clara
que essas perseguições estão ligadas ao declínio da prosperidade do Brasil, na
época mais rico do que as colónias inglesas que dariam origem aos Estados
Unidos. Mas isso só se tornaria claro no século XIX, graças ao desenvolvimento
do capitalismo e das instituições democráticas nos novos Estados Unidos.
Pensadores portugueses como Antero de Quental pensam que existe
um antes e um depois da presença judaica e associam a decadência ibérica à
expulsão dos judeus da Península. É verdade?
Temos
de distinguir entre judeus e cristãos-novos. Na verdade é uma tese antiga mas
que tem um problema: o auge do poder de Espanha e de Portugal ocorre depois da
expulsão dos judeus, no século XVI...
Mas ficaram os cristãos-novos, os cripto-judeus...
Exacto.
É por isso que temos de ver o que se passou com a Inquisição, sobretudo porque
esses cripto-judeus formavam boa parte não só da burguesia mercantil mas também
eram artesãos e muitos deles integravam a elite intelectual do país. Com a
Inquisição essa camada da população empobrece e os comerciantes são
substituídos por estrangeiros, ingleses e franceses. Gradualmente, sobretudo no
século XVII, Portugal foi ficando dependente do estrangeiro devido à acção da
Inquisição. É neste quadro, que cruza os séculos XVI e XVII, que se pode dizer
que a Inquisição enfraqueceu Portugal ao destruir uma parte importante, senão
fundamental, da sua elite mercantil e intelectual.
O poder real não interveio porquê? Interessava-lhe? Não podia?
Portugal
viveu uma época de tensões entre os que desejavam tirar proveito da expansão
ultramarina e os sectores que preferiam manter um tipo de vida mais
tradicional, mais rural. O poder real ainda fez gestos para limitar o poder da
Inquisição, decretou amnistias gerais, mas o Rei não era um "partido"
que pudesse estar de um dos lados nestes conflitos. O Rei procurava conciliar
os diferentes interesses, o que criou situações contraditórias e levou a
soluções de compromisso economicamente insatisfatórias. Isto mesmo tendo podido
contar com o apoio dos Jesuítas que, no século XVII, queriam limitar o poder do
Santo Ofício e, em Portugal, tiveram uma voz tão distinta como a do Padre
António Vieira. Nas colónias, por exemplo, os jesuítas procuraram proteger os
cristãos-novos porque perceberam que eram muito importantes para o
desenvolvimento das colónias, em especial no Brasil. O conflito foi longo,
durou várias décadas após a Restauração de 1640, mas a vitória acabou por ser a
das forças mais conservadoras.
Os judeus começaram a regressar a Portugal no início do século
XIX, formando comunidades pequenas, as primeiras em Lisboa e nos Açores, só que
isso sucede quando na Europa estava a surgir um novo tipo de anti-semitismo,
baseado na raça. Como explica?
O
liberalismo em Portugal entrou de forma lenta e incompleta e, até ao fim da
Monarquia Constitucional, a única religião aceite continuou a ser o catolicismo.
A prática do judaísmo era, contudo, permitida aos estrangeiros e começou logo
após as invasões francesas, altura em que já havia uma pequena sinagoga em
Lisboa, algo impensável em Espanha. Eram grupos pequenos, sobretudo de
comerciantes e ligados a negócios com o Reino Unido. Quando, por fim, depois da
revolução do 5 de Outubro, o judaísmo foi reconhecido como religião de corpo
inteiro, Portugal já se transformara num país de emigrantes, num país pobre que
dificilmente poderia atrair grandes comunidades estrangeiras.
Contudo teria sido possível que
os judeus que tinham saído de Portugal, que até tinham mantido as tradições e a
língua, regressassem ao país dos seus antepassados. Não o fizeram, mesmo quando
a ameaça nazi se foi tornando cada vez mais clara. Porquê?
Historicamente Portugal teria podido proteger muitos
dos judeus de origem portuguesa, mas não o fez. Paradoxalmente isso não se
passou em Espanha, onde no final do século XIX houve um movimento de
redescoberta dos judeus sefarditas do exílio que funcionaram como
"embaixadores" do país na diáspora. Talvez isso tivesse sucedido por
a Espanha ter sofrido, em 1898, o choque do fim do Império e Portugal não...
Mesmo assim Portugal, quando Hitler já estava no poder, teria podido salvar
milhares de judeus descendentes dos que tinham partido séculos antes, mas
Salazar nada fez e as comunidades que existiam em Bordéus, em Amesterdão ou em
Salónica, por exemplo, foram completamente destruídas.
Quando os judeus são expulsos de
Portugal também ainda vivia cá uma significativa comunidade muçulmana. O que é
que lhe aconteceu?
O édito não visava apenas os judeus, também obrigava
os muçulmanos a partirem. Contudo essa comunidade não só era muito mais pequena
como, do ponto de vista económico e cultural, tinha muito menos influência. As
consequências da sua saída seriam sempre menos importantes. Para além de que,
como escreveu Damião de Góis, ele mesmo um cristão-novo, houve sempre uma
grande diferença no tratamento dos judeus e dos muçulmanos porque estes tinham
estados poderosos que poderiam defendê-los. Os judeus é que não tinham quem os
defendesse.
Por outro lado, nas zonas rurais, era comum os
muçulmanos converterem-se ao cristianismo, e os cristãos ao Islão, conforme o
poder do momento. Já os judeus, habituados a viver em minoria, resistiam mais a
mudar de religião. Isso vê-se bem nos autos da Inquisição, onde também os casos
de cripto-islamismo são muito menos numerosos do que os processos por
cripto-judaismo.
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