O escrivão Pêro Vaz de
Caminha (1450-1500), que integra a frota de Cabral, encarregado de descrever
essa “nova terra” ao rei de Portugal, Dom Manuel (o venturoso), destaca na sua
carta, os principais objetivos dessa armada portuguesa, dentre os quais a busca
pelo crescimento económico dos ideais mercantis, a expansão dos ideais cristãos
e a afirmação de Estado português. Vejamos alguns trechos dessa carta de
Caminha, escrita nos primeiros dias de maio de1500:
[...] Esta terra, Senhor, é
muito chã e muito formosa. Nela não podemos saber se haja ouro, nem prata, nem
coisa alguma de metal; porém, a terra em si é de muitos bons ares [...] as
águas são muito e infindas. Em tal maneira (a terra) é grandiosa que, querendo
aproveitá-la, tudo dará nela, por causadas águas que tem. Porém, o melhor fruto
que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar. E que não houvesse mais
que ter aqui Vossa Alteza esta pousada para a navegação [...], isso bastava.
Mas ainda, disposição para nela cumprir-se – e fazer – o que Vossa Alteza tanto
desejava, a saber o acrescentamento da nossa Santa Fé! [...], pois o desejo que
tinha de tudo vos dizer, mo fez por assim pelo miúdo. Beijo as mãos de Vossa
Alteza. Desde Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira,
primeiro dia de maio de 1500. (CAMINHA, Carta 1500)
Esse trecho da carta
exemplifica o que já foi dito acima. Observemos uma descrição espacial do meio
da “gente” que nela habitava.
[...] Eram pardos, todos nus,
sem coisa alguma que cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas
setas. [...] Eles não lavravam, nem criavam. Não há aqui boi nem vaca, nem
cabra, nem ovelha, nem qualquer outra animália, que costumada seja ao viver dos
homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente de
frutos, que a terra e as árvores de si lançam [...]. (CAMINHA, Carta 1500)
Vemos aqui uma breve
descrição dos seres “semelhantes a homens” que os portugueses viram na costa
dessa terra desconhecida do mundo europeu
[...] A língua de que (os índios) usam, toda
pela costa, é uma: ainda que em certos vocábulos difere em algumas partes; mas
não de maneira que se deixem de entender. [...] Carecem de três letras, convém
a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim
não tem Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente [...]
(GÂNDAVO, 1576).
Esses homens chamados índios,
devido às primeiras intenções dessas expedições marítimas em busca das rotas
rumo as índias orientais, em princípio foram o grande alvo de discussões dos
séculos que se seguiram. Bem como Gândavo mencionou, esses homens não possuíam
os fundamentos ocidentais, rei para governar com mãos fortes e poder absoluto,
lei para manter a ordem e a civilidade e ter a fé católica e seus valores. Mas
também mostrava o interesse dos europeus em conhecer toda essa gente
TUPI-GUARANI
Segundo Berta Gleizer
Ribeiro, o povo que Pedro Álvares Cabral encontrou na costa do atual estado da
Bahia, era chamado de Tupiniquim, pertencendo à grande família Tupinambá do
tronco linguístico tupi-guarani, localizados na costa. Foram esses tupis, que
informaram os primeiros cronistas e jesuítas a que havia uma “divisão” entre os
que povoavam a terra: seriam os que falavam a língua deles e tinham os “mesmos”
costumes e todo aquele que não era assim foram chamados de tapuia, que para
Berta Ribeiro significa “escravo” – também pode significar o “outro”. Essa
divisão serviu principalmente para adistinção dos indígenas do litoral dos do
que residiam no sertão. Os tupi viviam numa estreita faixa ao longo da costa,
de São Paulo até o Pará. A primeira gramática de sua língua foi escrita pelo
padre José de Anchieta. A língua guarani era falada de São Paulo ao Rio Grande
do Sul, bem como no Paraguai, onde ainda hoje é de uso tradicional entre a
população rural e mesmo da capital, Assunção e na zona de fronteira no sul de
Mato Grosso. Usualmente, os tupi, habitantes do litoral, eram chamados de
tupinambá, sendo divididos em diversos grupos locais. Os Tupiniquim e Tupiná na
região de Porto Seguro e Espírito Santo; Os Tamoio e Temirnino do rio Paraíba
até Angra dos Reis; Os Carijó do rio Cananéia até a Lagoa dos Patos; Os Tape no
litoral rio-grandense; Os Caeté na região do rio São Francisco até o rio
Paraíba; Os Tabajara do Itamaracá até o rio Paraíba; Os Amoipira na região do
São Francisco; Os Potiguares que abrangiam as regiões da Paraíba, Rio Grande do
Norte e Ceará e os Tupiná na área mais próxima do interior de Pernambuco. Foram
os tupi que, no decorrer da presença portuguesa , mais influenciaram na
formação da sociedade brasileira. Os tupi, também ficaram conhecidos por uma
lenda que era contada ao longo das gerações e foram repassadas aos colonos
portugueses. Era a lenda de que havia uma legendária “terra sem males” ou um
“paraíso terrestre” em algum lugar, e esse conto, foi de bastante ajuda na
catequização dos mesmos, uma vez que se convertendo a Cristo, teriam a salvação
e a vida eterna e iriam para a “terra prometida”.
OS “TAPUIAS” eram chamados
genericamente de “tapuia”, eram grupos filiados numa família linguística de
língua isolada, ou seja, os não tupi. Para Berta Ribeiro, são povos de cultura
material mais simples, no entanto, a maneira como organizam a vida em sociedade
é bem mais “complexa” e “elaborada” que a dos tupi-guarani ou dos povos da
floresta tropical.
Na verdade, quando os
portugueses chegaram à costa brasileira, ainda havia algumas tribos ditas
“tapuias” .Os “tapuias” ou os de língua jê, encontravam-se distribuídos da
seguinte forma: os Guaianá, onde os seus descendentes são os Kaingáng, na
região de São Paulo e Paraná; os Goitacá ou Guaitacazes na região do Rio de
Janeiro e Espírito Santo que no século XIX serão chamados de Puri, Coroado e
Coropó; Os Aimoré ou Botocudos (hostis) na região da Bahia, Minas Gerais e
Espírito Santo, são os mais temidos do período colonial português; os Karirina
região onde hoje é o Nordeste, são um dos “tapuias” mais famosos do Brasil;
Kaypó ou Ibirajara meridionais relatados pelo padre Anchieta; os Tarairiu,
também da região Nordeste, aparecem na literatura de cronistas holandeses como
Marcgraf, Barleus, Roulox e outros. Outros povos também chamados de “tapuia”
são os Malili, os Kamakã e os Makali, pois possuem línguas independentes. Gabriel
Soares, um oficial português, escreveu em 1587 sobre os índios Guaianá: “[...]é
gente de pouco trabalho [...]; se encontram com gente branca, não fazem nenhum
dano, antes boa companhia, e quem acerta de ter um escravo Guaianá não espera
dele nenhum serviço, porque é gente folgazã de natureza e não sabe trabalhar.”
Podemos ver como as conceções de trabalho dos
europeus eram bastante diferentes do das culturas indígenas. Os índios
normalmente dividiam as suas tarefas por sexo e por idade, ou seja, as mulheres
cozinhavam, cuidavam das crianças, plantavam e colhiam; já os homens
participavam de atividades guerreiras, da caça, de pesca e do derrube da
floresta para fazer a lavoura. A sua produção destinava-se à subsistência,
realizando apenas trocas rituais de presentes – ritual que foi essencial para
os contatos com os colonos portugueses. Dos povos que os portugueses encontraram
em 1500, restam pequenos grupos muito como os Potiguares e Pataxós, na região
entre Paraíba e Bahia; os Tupiniquim na região do Espírito Santo; os Guarani,
nas regiões de São Paulo e Mato Grosso; os Kaingáng na região sul. Constituíam
uma espécie de ilhas no meio da população “neobrasileira”
ASCENSÃO DA ESCRAVIDÃO NEGRA
A mão-de-obra indígena não
supria as exigências dos engenhos, era
difícil sustentá-las nas fazendas o que estava
a gerar muito prejuízo aos colonos. Pouco a pouco, os senhores dos engenhos
começaram a comprar escravos vindos da África. Segundo Stuart Schwartz, em fins
do século XVI, a mão-de-obra dos engenhos era mista do ponto de vista racial, e
a proporção foi aumentando em favor dos africanos importados e sua prole.
Schwartz também apresenta dados sobre esses acontecimentos: “Em 1572, o Engenho
Sergipe possuía 280 escravos adultos, dos quais apenas vinte (7%) eram
africanos. Em 1591, a população cativa do engenho era de 103 indivíduos, 38
(37%) deles africanos. Em 1638, quando a propriedade foi arrendada a Pedro
Gonçalves de Matos, havia 81 escravos, todos eles africanos ou
afro-brasileiros. ”Na verdade, a transição para uma força de trabalho africana
foi efetuada nas primeiras décadas do século XVII, época em que a indústria
açucareira experimentava rápida expansão e considerável desenvolvimento interno
devido aos altos preços internacionais do açúcar, do crescimento do mercado
europeu e, de acordo com Schwartz, também a questão da paz nos mares com a
trégua dos doze anos entre Espanha e Holanda (1609-1621).A visão que se tem do
negro é que ele tem certa “predisposição” ao trabalho escravo. Para Schwartz,
[...] Os africanos sem dúvida
não eram mais “predispostos” ao cativeiro do que índios, portugueses, ingleses
ou qualquer outro povo arrancado da sua terra natal e submetido à vontade
alheia, mas as semelhanças da sua herança cultural com as tradições europeias
valorizavam-nos aos olhos dos europeus. A suscetibilidade dos índios de todas
as idades às doenças europeias aumentava o risco do investimento de tempo e
capital para treiná-los em trabalhos artesanais ou de fiscalização. [...] A
saúde e a perícia dos africanos, bem como a sua pouca oposição ao cativeiro,
podem explicar a relutância dos senhores de engenho em investir no treino de
escravos indígenas; [...] (SCHWARTZ, 1988, p.70).
No Brasil, a posição relativa
dos cativeiros indígenas e africanos na força de trabalho da indústria
açucareira, para Schwartz, pode ser vista na sua forma simples e crua nos preços
relativos de indivíduos dos dois povos. O preço médio de um africano em ocupações
durante os anos de 1572 era de 25 mil-réis enquanto o dos nativos com as mesmas
ocupações valiam cerca de 9 mil-réis. Somente indígenas com ocupações
artesanais - carpinteiros, caixeiros e calafates – possuíam o “devido valor”,
semelhante aos dos africanos.
208.1 A IGREJA E A ESCRAVIDÃO
A escravidão, inicialmente
dos índios e posteriormente dos negros africanos, foi um fator decisivo para a
implantação da grande lavoura canavieira no Brasil. Por isso, em plena dita
“Idade Moderna”, de acordo com a mentalidade colonialista, justificava-se a
escravidão com os seguintes argumentos: os índios eram criaturas bestiais,
antropófagas, supersticiosas e desprovidas de razão e da fé cristã, portanto,
sujeitos ao domínio civilizacional da Europa; A escravidão era imprescindível à
formação do Brasil, pois os escravos eram os “pés” e as “mãos” dos senhores de
engenho; os africanos, descendentes de Caim e amaldiçoados por Deus, deveriam
sofrer no Brasil, purgando seus pecados, como forma de alcançar a salvação; o
comércio de escravos e a propagação do cristianismo retiravam os africanos do
estado de barbárie em que viviam, evitando que os mais fortes destruíssem os
mais fracos em guerras tribais. “Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua
Etiópia, e passada ao Brasil conhecera bem quanto deve a Deus e a sua
Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça e não é
senão milagre e grande milagre!”(Padre António Vieira, 1633)
[...] Os senhores poucos, os
escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os
senhores banqueteando; os escravos perecendo a fome; os senhores tratando-os
como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em
pé apontando para açoite, como estátua da soberba e da tirania, os escravos prostrados
com as mãos atadas atrás, como imagem vilíssima de servidão e espetáculos da extrema
miséria. Oh Deus! Quantas graças devemos à Fé que nos destes, [...] para que à
vista destas desigualdades reconheçamos com tudo vossa justiça e providência!
[...].
(Sermão do Padre António
Vieira) Na verdade, os colonos portugueses em geral não se sentiam propensos a
renunciar ao controle dos índios, especialmente quando podiam ser obtidos por
uma “ninharia”, e demonstraram essa aversão com protestos e manifestações
políticas, particularmente nos anos de 1609 e 1640.
VISÃO INDÍGENA: DE ONDE
VIERAM OS EUROPEUS?
Os europeus procuraram uma
explicação coerente e homogénea sobre a origem dos índios. Até hoje, não se
sabe exatamente. Existe a versão religiosa e a cientifica. Quanto aos índios, o
que pensaram eles dos europeus? Para Melatti, cada sociedade indígena tem uma
resposta diferente. O único consenso, é que a maioria dessas explicações estão fazem
parte de relatos míticos contados pelos mais antigos e passados de geração em
geração. Neles essa questão aparece não raro ligada a uma outra: a de explicar
porque os indígenas se acham numa situação de subordinação, de povos dominados,
perante os brancos. É tema digno de questionamento. Porque os índios procurariam
explicar a sua “inferioridade” técnica perante os europeus? Porque se
considerariam eles inferiores e “constrangidos” frente a civilidade branca? Se
se contavam essas histórias nas tribos, porque é que os índios não procuraram
tal civilidade? E para terminar, esses mitos foram forjados antes ou depois da
presença europeia?
REFERÊNCIAS
MELATTI, Julio Cezar. De onde
vieram os índios. In:Índios do Brasil. 7.ed. São Paulo:HUCITEC; Brasília:
EDUNB, 1993. cap. 1, p.5-18.MONTEIRO, John Manuel. Contato, alianças e
conflitos. In: Negros da terra: índios ebandeirantes nas origens de São Paulo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994. cap. 1, p.29-36.-FUNARI, Pedro Paulo A.;
NOELLI, Francisco Silva.
Pré-História do Brasil: As
origens dohomem brasileiro, O Brasil antes de Cabral e Descobertas
arqueológicas recentes. 2.ed. SãoPaulo: Contexto, 2005.RIBEIRO, Berta Gleizer.
O Brasil indígena. In:___.
O índio na história do Brasil.
6.ed. SãoPaulo: Global, 1983. cap. 2. p.19-40. Os aborígenes descobrem o europeu.
Revista USP: dossiê
quinhentos anos de América, São Paulo, n. 12, dez./jan./fev. 1991-1992.
p.37-47.SCHWARTZ, Stuart B.
Segredos internos: engenhos e
escravos na sociedade colonial. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1988. cap. 2;3,
pp.40-56;57-73.
OUTRAS REFERÊNCIAS
CAMINHA, Pero Vaz. Carta ao
rei de Portugal. 1500.GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Crônicas e História da terra
de Vera Cruz. 1576.RELATOS. “Avulsos” do século XVI.
https://www.academia.edu/6110140/PRIMEIROS_CONTATOS_ENTRE_NATIVOS_E_EUROPEUS_S%C3%89CULO_XVI_Coloniza%C3%A7%C3%A3o_portuguesa